Acordar da Vida


 Você às vezes sonha com uma situação, e nos seus sonhos, como não existe noção de tempo, você tem a sensação presente, e todo o passado com o contexto daquela situação. Memórias mesmo, de uma vida fictícia que às vezes se misturam com memórias reais e criam uma realidade que faz quase que nenhum sentido.


E se você é uma dessas pessoas de hábito noturno, que quando acorda de manhã, leva um certo tempo para que o cérebro fique completamente desperto, você sabe a sensação estranha que é acompanhar enquanto as memórias dessa outra realidade vão sumindo aos poucos.


Uma vez, num documentário sobre sonhos, eu vi uma moça treinada em sonhos lúcidos, que dizia que o segredo era a auto-observação. Se você questiona a sua realidade a todo momento, mesmo quando acordado, é mais fácil de fazer isso em sonho também.


Eu acho que foi isso o que engatilhou tudo.


Eu vivia uma época difícil da minha vida, na parte profissional e na familiar. Uma coisa leva à outra, na maioria das vezes. E com a sua mente tentando processar tudo o que acontece psicologicamente durante o dia, durante a noite o emocional é quem manda, e a lógica se dobra.


Então na maioria das vezes os meus sonhos, mais frequentemente pesadelos, eram repetições do dia a dia misturados com os medos que me causavam ansiedade. E aí é que vem aqueles sonhos que realmente são assustadores, que são os sonhos bons. Eles vêm uma vez a cada duas ou três semanas, são perfeitos, só boas sensações e uma realidade libertadora. Quando você acorda, você tenta voltar para o sonho, quando está trabalhando, as vezes fica tentando repassar ele na cabeça como um filme para tentar simular a mesma sensação. Você até começa a ficar ansioso pela hora de dormir, que é quando você tem a liberdade de ser feliz independente dos fatos. É o início da queda, quando você não se interessa por meios de ser feliz no mundo real.


Quando aconteceu comigo pela segunda ou terceira vez, eu fiquei com medo, eu já vi o que a depressão faz com as pessoas. Só que aí não tem o que fazer, tipo, se até os sonhos bons são um problema, para onde você foge? Quem faz auto observação tende a pensar mais do que é saudável, às vezes.


Pois é, tudo isso que eu descrevi a cima estava ainda fresco na minha mente quando eu tive o primeiro sonho estranho. Não era um sonho bom nem ruim, era a vida de uma pessoa normal que não tinha nada a ver comigo. A pessoa tinha problemas normais, nada tão sério quanto os meus, e viver a vida menos problemática dessa pessoa não me causava alívio, era só uma visão de fora de um não relacionado.


Eu não tinha controle, eu só acompanhava. Era um cara que trabalhava num escritório numa fabriquinha. Ele andava para cima e para baixo na calma, tomava café, brigava com a esposa, saia para jantar, bebia no bar. O normal do normal, do comum. Ele não tinha a mesma pressa, ansiedade ou agonia que eu tinha, mas eu não era ele, eu só estava colado nele, como se eu estivesse vinculado a ele e tivesse que observar tudo o que ocorria na vida dele.


E eu lembro que ele conversava comigo como se soubesse que eu estava lá. Perguntava a minha opinião, respondia aos meus comentários, às vezes até seguia minhas sugestões. Eu não lembro se outras pessoas me viam, eu acho que não, mas ninguém estranhava ele conversando comigo.


E é num desses momentos que você começa a questionar a sua realidade, sabe. Primeiro, eu pensei: “porque é que eu estou acompanhando esse cara? A vida dele é bem mais tranquila do que a minha, eu tenho problemas mais sérios para resolver”. E aí é que a realidade começou a desmanchar, e eu desconfiei que estava sonhando. Eu lembro de ter dito que eu precisava ir, por que já estava quase na hora de eu ter que ir para o trabalho, e ele me respondeu assim:


“Calma aí, não vai não! Devem ser só umas 4 da manhã ainda, tem tempo. Me ajuda com isso aqui, que amanhã durante o trabalho eu te ajudo também”


No sonho, eu não achei estranho. Eu estava com pressa. Ele estava tentando encontrar um documento numa pasta do computador do trabalho, e eu ajudava ele a procurar pelas listas de arquivos, mas eu estava mais preocupado em terminar aquilo antes de dar a hora de ir para o trabalho, por que daqui a pouco eu ia acordar e levantar.


E a gente continuou procurando na pressa, e nada de conseguir encontrar. O arquivo tinha um nome específico, que era o nome de um carro. Acho que era Fox, Pagero ou algo assim. Eu sei que teve uma hora que ele mesmo desistiu e falou para deixar para lá.


Ele falou assim:


“Amanhã, no computador do trabalho você procura no Google qual que é o valor de tabela desse carro para mim?”


Aí eu respondi para ele assim:

“Mas como que eu vou procurar isso? Na hora em que eu acordar, essa memória desse sonho vai sumir de novo, eu não vou lembrar o que eu tenho que pesquisar.”


E na hora que eu disse isso, a minha atenção despertou, eu fiquei bem intrigado com isso, pareceu muito estranho, sabe? É o tipo de coisa que faz você até acordar.


Ele falou assim:

“Putz, verdade né Bom, não tem jeito, a gente começa do zero, então. Ou se pá, eu posso ir com você amanhã, também, na hora que você acordar”


Aí, brother eu senti um medo daquela estranheza, e comecei a despertar. Eu acordei meio desorientado, até demorei para entender onde eu estava, por que naquela época, eu tinha mudado de lado da cama com a minha esposa, então a visão era diferente, sabe.


Eu acordei com aquela sensação de familiaridade com o cara na cabeça, e eu estava tentando lembrar se eu conhecia ele na vida real, mas ali eu já sabia que se eu me distraísse do contexto do sonho eu ia esquecer dele completamente, então eu tentei repassar ele o mais rápido possível. Tentar evitar esquecer de um sonho é como tentar segurar areia nas mãos.


Eu peguei um caderno de cabeceira que eu tenho justamente para isso, e comecei a escrever bem rápido o que aconteceu no sonho, e depois de ter escrito, eu percebi que eu ainda lembrava do sonho muito bem. Lembrava de mais detalhes, e continuava escrevendo. E não paravam de vir os detalhes. Tinha muito detalhe que eu conseguia montar, parecia um daqueles sonhos que daria enredo para um filme, sabe. De primeira, parece que cada pedaço é um recorte desconexo, mas o meu filho com certeza ia adorara criar uma teoria para explicar tudo.


Nisso, eu olhei no celular para ver as horas, e vi que ainda era meia-noite e meia. Eu tinha ido dormir há uns minutos mais ou menos.


Dizem que nos sonhos a noção de tempo não exige, por que os nossos cérebros não são obrigados a acompanhar a velocidade do funcionamento do mundo, mas essa teoria nunca fez sentido para mim, já que a gente observa o mundo do nosso ponto de vista, que obedece à velocidade de raciocínio do nosso cérebro. Na minha teoria, o sonho e a realidade deveriam funcionar na mesma velocidade.


O meu menino, no entanto, queria me convencer que eu talvez tivesse até sonhado tudo isso fora de ordem, por que a noção de ordem só aparece depois que eu acordei:


“O seu cérebro recompila toda a informação antes de você acordar, pai, quando você está preocupado se vai lembrar do sonho ou não.”


É tudo teoria essas coisas, ninguém sabe de nada a respeito disso, mas aquele sonho entrou na minha cabeça de um jeito, que eu até fiquei perturbado por alguns dias. No sonho, eu estava com alguém que sabia como era a minha vida fora do sonho, e por algum motivo, os problemas dele dentro do sonho eram tão importantes quanto os meus fora do sonho.


Eu até pesquisei o preço de tabela do tal do carro. Pesquisei de alguns modelos, por que já não lembrava mais qual era, e depois disso, como a história estava salva no caderninho, nem me preocupei mais em lembrar dos detalhes. 


Bom. Passou o tempo eu tive o segundo sonho. Foi com uma menina chamada Amanda. Era uma mulher, na verdade. Devia ter uns 30 anos, mas ela tinha o cabelo pintado de azul, e era muito divertida, falava ainda com gírias de adolescentes da sua época. A gente morava em Curitiba há alguns anos, não tínhamos filhos nem nada. A gente gastava quase todo o dinheiro em contas e aluguel, mas eu lembrava dos nossos hábitos. Todos os meses a gente juntava o que sobrava das contas, e planejava um ou dois jantares ou passeios. Eu lembrava de tudo, lembrava que os pais dela eram aposentados. O pai dela era mecânico e a mãe tinha sido funcionária da prefeitura. Lembro que ela tinha uma irmã gêmea que tinha a cor do cabelo natural, que me fazia lembrar qual era a cor do cabelo da Amanda quando a gente se conheceu.


Eu lembrava de tudo isso, mas nada disso aconteceu durante o sonho. O sonho em si, foi sobre uma noite em que eu e a amanda ficamos sem dinheiro para um jantar no final do mês, e decidimos fazer um piquenique a luz da lua. Era uma sensação maravilhosa por que nós não tínhamos nada, e já era suficiente, sabe. A gente não precisava resolver problemas financeiros para ficarmos juntos. E a sensação era tão boa, que ali mesmo, sentado na grama com ela, no farol do carro, eu comecei a fazer aquele exercício que eu costumava fazer a todo momento, para ver se eu me lembraria de fazer dentro de um sonho. 


Eu queria ter certeza de que eu não estava sonhando, tentei me lembrar do passado, me perguntar quem eram os pais dela, quem eram os meus, com que trabalhava, qual era o carro, quando que eu tinha comprado (por acaso era uma Pagero no sonho), me perguntei quando eu conheci, onde morávamos, etc... e eu conseguia me lembrar de tudo, em detalhes.


E quanto mais coisas eu conseguia lembrar, mais calmo eu ia ficando.


Ela me perguntou, e o mais incrível, eu lembro da voz dela, era mais grave do que o comum, mas era muito familiar e gostosa de ouvir: 


“Se perdeu aí?”


E aí eu falei o que eu estava fazendo:

“Não, eu estava aqui tentando ver se não estava sonhando, sabe. Tentando ver se eu sabia de tudo, se não foi a minha mente que criou isso tudo”


Ela deu um sorriso e passou a mão no meu rosto, disse que aquilo era muito lindo, mas eu não quis dizer com essa conotação romântica, sabe. Ela que entendeu assim.


Daí a gente estava comendo, e ela chamou a minha antesão para uma ideia que teve, falou com a boca cheia mesmo, sabe:


“Tem um filósofo que disse uma vez, que o passado não existe no passado, ele só existe no presente, quando a gente, estando no presente, puxa as memórias para a frente da cabeça. Se for isso mesmo, então você pode estar criando essas memórias em vez de lembrar delas, já pensou nisso?”


“Eu não tenho essa criatividade tão rápida”, eu falei. 


Ela riu só. A gente continuou comendo distraídos com essa ideia, e aí ela perguntou assim:


"Você já ouviu falar sobre o acordar do mundo?"


Eu falei que não, e aí ela me explicou que era uma lenda urbana: “Existe algum tipo de evento que se acontecer forte o suficiente com uma pessoa, tipo um acidente de carro, um medo ou um susto muito forte, ela desperta, e descobre que a vida anterior dela foi um sonho. Tipo, você está comigo a sua vida inteira, a gente se conheceu jovem, passou por um monte de coisas juntos, passamos dificuldade, compramos uma casa, fizemos viagem e tudo mais. Se uma coisa específica que te conecta numa próxima vida acontecer com você, tudo o que a gente viveu some, e você acorda numa casa diferente, com outra vida, e percebe que o que você passou foi só um sonho. Você pode até esquecer do sonho depois, se não anotar no caderno de cabeceira.”


Na hora que ela falou do caderno de cabeceira, eu lembrei do outro sonho, em que eu estava ajudando o rapaz a procurar a tabela de preços do carro. Num piscar de olhos eu pensei: “Engraçado aquele sonho, será que eu pesquisei o sonho no computador do trabalho no dia seguinte?”

Só que eu não trabalhava com computador naquele sonho da Amanda.


Eu tive só tempo de olhar para ela, e pensar que eu ia acordar, que nem ela disse. Eu olhei bem para ela, tentei memorizar o rosto dela o máximo que eu pude, e eu lembro que eu senti uma tristeza muito grande em pensar que ela ia sumir, e que eu não ia ver mais ela, nem aquela vida. Era que nem fechar os olhos e esperar pelo tiro, eu sabia que a qualquer momento ia acontecer, então eu foquei no rosto dela e tentei lembrar do rosto e da voz.


Aí eu acordei, e ela, os pais dela, os meus empregos, a Pagero, os passeios, os jantares, tudo mais desapareceu.


Eu acordei e levantei da cama, e os detalhes daquele sonho foram sumindo da minha mente aos poucos. Se eu soubesse desenhar, eu tinha desenhado ela, para não esquecer.


E o mais sinistro é que o mundo real não podia preencher o vazio que esse sonho deixou em mim.


Eu fiquei pensando nesse sonho por dias, e fiquei imaginando que as minhas memórias anteriores aquele sonho poderiam também estar sendo criadas na minha cabeça em tempo normal, mas a lógica que parecia perfeita dentro do sonho já estava se perdendo, do lado de fora. Eu acho às vezes que eu sou mais lúcido nos meus sonhos do que quando estou acordado.


Em fim, eu acabei por me divorciar da minha esposa um ano depois, por que eu estava com medo de esse tipo de sonho bom ficar mais frequente. Querer escapar da realidade é que nem afundar numa areia movediça. Eu decidi construir para mim uma vida da qual eu não ia querer fugir. Dá trabalho, para quem aprendeu a deixar a vida me levar como eu fiz a vida toda, mas vai sendo aos poucos.


E eu fiquei meio psicótico com esse negócio de o passado ter mesmo sido criado em vez de lembrado. É ainda mais difícil para uma pessoa cuja personaldiade mudou tanto quanto eu. Mas aí eu te pergunto, se o passado é feito de fatos, como que eu digo que um sonho que mudou a minha vida desse jeito não faz parte da realidade?


Eu tive uma experiência de vida inteira, eu tinha uma memória de um outro casamento. Eu deixei de ter paciência com um monte de coisas. O sonho aconteceu de fato, eu lembro até hoje da maioria dos detalhes. Não tem como dizer que não aconteceu de fato. Eu cansei de tentar separar uma coisa da outra. Para mim, é tudo realidade, e eu aguardo o dia em que eu vou acordar dessa vida, e descobrir que toda essa experiência de superação que o meu divórcio gerou também não passou de um sonho.




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